Mercado

Quem não é visto não é lembrado?

Esta seria uma mensagem universal ou alguma coisa está fora da ordem mundial? Comecei a pensar sobre esse choque conceitual e comportamental que move o mercado mais constantemente após o falecimento de um grande amigo que é uma referência no setor do turismo. Mais recentemente, pelo fato de não comparecer em algumas feiras do setor há anos, eu mesma tomei um chacoalhão de realidade ao verificar a surpresa das pessoas ao tombarem comigo durante um coquetel. Afinal, eu desaparecera?

Durante um almoço recente com dois amigos jornalistas de longa data, falando sobre os perigos inerentes do fim do ofício um deles me falou: “Minha cara, rei morto, rei posto”. A frase não veio com ironia, mas com um certo pesar e autocrítica. Começamos a desfilar alguns nomes importantes do jornalismo de turismo, rememorar resenhas, viagens, perrengues e a exaltar a qualidade dos textos.  O que me lembra uma jornalista amiga que diz que “quem lê jornal é jornalista” e emenda em um “quem gosta de textão corre pra um livro”.

Texto? Rimos todos. Não! “Conteúdo”, “narrativas”, o famigerado “storytelling”. Começamos a ficar com preguiça já no meio da prosa enquanto as bebidas chegavam. “Seja o que for, às vezes tudo me parece uma grande ilusão”, soltei no ar mais deprimida do que indignada, de fato.

Apesar do furor (hoje estou arisca), meu objetivo com este texto é discreto. Quase uma conversa de mesa de boteco despretensiosa para combater certo cinismo instaurado nas relações e no tráfego da comunicação e de como percebemos as mensagens, os signos, o famoso “conteúdo” que, por vezes, se resume a uma definição estética de conceito, vestimenta, vocabulário, sinuosidades e ambivalências. Mas isso não faz parte do átomo da linguagem? Ah, é.

Sobre as contribuições criativas/corporativas vemos muitos “talks”, seminários. Eu fico com a impressão de que, para além do fato desses encontros poderem, de fato, serem interessantes, fica uma mensagem subliminar de como você se transforma em uma marca. Ferramentas, fórmulas e depoimentos para que todo mundo se torne um influenciador (do quê e pra quem?). “O TikTok vai substituir a importância do Instagram em breve”, foi o que ouvi de uma jornalista. Recordei que, em conversa com um comunicador em recente celebração de aniversário de um outro amigo jornalista, ele me disse: “Se depender de mim pra fazer dublagem e dancinha eu paro de existir aqui. Morri. As redes são um caminho sem volta. A gente já era. Se não dançar, dança.” Rimos de nervoso, mas, efetivamente, é um caminho sem volta em contínua reorganização. Só me incomoda a brutalidade, a vigilância, o controle, as negligências e concessões desses movimentos que se retificam e se impõem de forma hegemônica.

Bom. Venho escrevendo um esboço que talvez se torne um livro sobre inadequação e invisibilidade. Reflito sobre o sentimento de pessoas, que, como eu, não só não conseguiram se “reinventar” nessa nova tecnologia, como, na verdade, não estão interessadas em reinventar nada. Bem pelo contrário. Querem ser o que são e exercer a sua existência da forma mais analógica e orgânica possível com um certo direito à imperfeição.  Não queremos ser reféns de tendências, de algoritmos, de eventos como máximas triunfantes dos reguladores de mercado.

Falando em eventos. Pois é. Eu fui nesse coquetel e reconheço que, além de alguns jornalistas, eu não conhecia absolutamente ninguém. Lá encontrei com um fotógrafo do trade que desde que eu comecei no turismo, há 25 anos, cobre os acontecimentos do trade.  Nos abraçamos fervorosamente e ele me disse palavras importantes sobre a minha trajetória, expertise, personalidade e que eu não podia “sumir assim”. Diante desse caro amigo resgatei fragmentos de mim, preenchi um pouco do quebra-cabeça. Um sentimento reverso ao que senti quando fui ao velório daquele outro amigo. Sinto com frequência que a cada falecimento passamos a existir sem uma peça. E essas peças vão aumentando, criando vastos campos de desmatamento em nossa memória afetiva. A memória, nossa faculdade mais épica e sem a qual não se constrói nada.

Recentemente, em uma pesquisa de mercado para a criação de um novo fórum, me perguntaram quem eu gostaria de ver ali representado. Respondi que gostaria de ver pessoas que não estão se expondo de forma aleatória na internet. Gostaria de ouvi-las e saber como estão produzindo, exercendo seu talento e ganhando seu sustento. O que as faz relutantes em usar as ferramentas digitais de forma cotidiana, como mantém suas relações. Minha resposta produziu um silêncio e eu estou pensando seriamente em produzir eu mesma tal sarau.

Se é para falar de mercado, vou transferir essa lógica para mercado. O que faz uma empresa ou marca investir quatro vezes mais em um influenciador e redes sociais do que em uma assessoria de imprensa ou em um veículo impresso? Como esse veículo impresso se mantém, mesmo sendo considerado de extrema importância para algumas empresas, mas cujo investimento é zero? Como manter o jornalismo ético e autônomo se toda uma ação é “casada”? O ovo e a galinha. Um certo jornal, um dos maiores do país, paga metade de um salário mínimo por uma matéria. Um certo grupo imobiliário paga 50 reais por cada fotografia de imóvel que aparece em seu aplicativo. Marcas que investem alto em nomes de “engajamento”, no entanto quando se trata de alguém considerado relevante propõe uma “parceria”. Parceria pra quem? Nesse território simbólico do consumo trocamos a produção de massa industrial pela produção de massa digital. Só tem preço o que nos pode ser tirado, o resto é valor imensurável.

Em um documentário sobre o artista americano Andy Warhol faz-se uma análise de que ele foi o primeiro a trabalhar a sua imagem como uma marca. Apostou em si mesmo quando todos olhavam torto pra ele. E sua previsão dos fatídicos 15 minutos de fama se concretizaram e foram bem além.

Para quem não se expõe resta o isolamento e a inadequação. Invisíveis ao mercado. Procurados quase que sigilosamente para consultorias que depois são transformadas em “narrativas” autorais e criativas de quem se joga na rede.

Existem bons exemplos? Claro. Há diversos sentidos para as exceções. Veja como a internet, os aplicativos e os aparelhos de celular deram visibilidade e nos apresentaram as vozes diretas dos povos originários, sem filtro.  Mesmo caso para denúncias de violência doméstica. E, para além disso, coletivos periféricos, pessoas ignoradas ou estereotipadas pela grande mídia tiveram um meio próprio de expressão e coalisão.

O colapso e a exaustão viraram performance. Se antes eu folheava uma revista de fofocas para limpar a mente, hoje eu passo horas olhando perfis de adoção de animais e memes e vou me acalmando num frenesi para o qual me disponibilizo.

Esta semana estava vendo um documentário sobre o músico Nick Cave e, em certo momento, ele diz que a única coisa que o amedronta na vida é a natureza. E que ela ainda vai dar o seu grande show. Quando esse show acontecer e ficarmos sem energia elétrica, quem será você quando ninguém estiver olhando para a tela de um celular?

* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Les Cinq Sens.

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