Gastronomia

Ponte aérea Paris – Trancoso

Entrevista com o consultor Charles Piriou

Há alguns pontos em comum entre o consultor de gastronomia e hotelaria Charles Piriou e o empresário Alexandre Allard: ambos são franceses, visionários, dotados de um bom gosto a toda prova, empreendedores, apaixonados pelo Brasil e querem mudar o mundo, reconhecendo na sustentabilidade o grande vetor transformador.

Piriou chegou ao Brasil há 20 anos, mas sua paixão pelo país surgiu muito antes, ouvindo Caetano Veloso e Gilberto Gil. Implantou o Clube Chocolate, na Oscar Freire, em uma época que concept stores (como Colette e Merci) eram grandes novidades no mundo dos descolados. Aliás, eis a única palavra que o define. Descolado de qualquer rótulo, aprendeu tudo sobre hotelaria e gastronomia na prática. Começou sua carreira no Georges, restaurante do Hotel Costes, empreendimento que foi pioneiro em lançar CDs próprios, que rapidamente se transformaram nas playlists mais bacanas dos anos 2000. Comandou o restaurante Eau, no Hotel Grand Hyatt, trazendo para São Paulo os chefs Yannick Alléno, Anne-Sophie Pic e Alain Passard.

Prestou muitas consultorias: Dalva&Dito, Brasil a Gosto, Dui e P.J. Clarke´s. Hoje dirige a Eight Consulting, pilota o Food Forum São Paulo e o Organic Festival Trancoso, eventos “im-pres-cin-dí-veis” para quem quer conhecer os rumos da gastronomia. Recentemente abriu a Origine Agency com experiências inusitadas e autênticas entre França e Brasil.

Generoso, compartilha suas descobertas na revista L’Officiel onde é colunista. Elegante, comme d’habitude, abriu espaço na concorrida agenda para um bate papo. Confira abaixo o resultado.

Les Cinq Sens: Você é uma referência no segmento de gastronomia. Como você analisa a evolução do setor no Brasil, nesses últimos 10 anos?

Charles Piriou: Agradeço pelo convite e pelo elogio. Vejo que a evolução do setor de gastronomia é grande, linda e crescente. Apesar da pandemia, que trouxe traumas e mudanças importantes, a cena gastronômica brasileira não para de evoluir no bom sentido. Nas grandes capitais há novos modelos e conceitos mais casuais e democráticos, os chefs estão mais engajados em causas importantes relacionadas ao alimento, a gestão se profissionaliza cada vez mais e surge uma nova geração de empreendedores conscientes. Parece que a gastronomia ficou mais alcançável e menos restrita ao luxo, os inúmeros programas de TV e criadores de conteúdo contribuíram para isso. Há também uma valorização maior da cultura e do terroir brasileiro, movimento ainda principiante alguns anos atrás. Quando vemos o chef nordestino Onildo Rocha assumir o complexo gigante Priceless em São Paulo, o Bruno Hoffmann inaugurar o Caos Brasilis ou ainda o Wanderson Medeiros trazer seu Picuí alagoano para São Paulo, fica claro que estamos com sede e fome de um Brasil expressivo, autêntico e com menos influências estrangeiras. A consciência saudável e sustentável deve trazer também grandes mudanças nos próximos anos na gastronomia e no mundo.

LCS: O paladar do brasileiro mudou e o paladar não retrocede, como diz Carlos Ferreirinha. Como as empresas, sobretudo hotéis e restaurantes, estão lidando com essa transformação nos hábitos de consumo?

CP: Primeiro, sou fã do Carlos Ferreirinha, adoro suas palestras provocativas e me lembro com gratidão de sua intervenção na primeira edição do Food Fórum, evento que realizamos em São Paulo desde 2017. Sobre a transformação dos hábitos em curso, acredito que inovação e adaptação são palavras da vez. Hotéis e restaurantes que ficaram parados no tempo não investiram em branding, melhorias na oferta e na operação e, claro, no marketing e na comunicação. Ficaram para trás. Os hotéis brasileiros, em sua imensa maioria, têm um longo caminho pela frente para se atualizar e tornar suas ofertas gastronômicas mais atuais e alinhadas com os paladares contemporâneos. Os consumidores querem qualidade com preço justo, ofertas criativas, modernas, consistentes, diversas e adaptadas aos novos estilos alimentares. Não se trata só de quantidade, mas sim de qualidade. As pessoas buscam viver experiências sensoriais impactantes, por mais simples que sejam. Nossa comida tem uma importância cada vez maior e expressa também nosso estilo de vida, e ela precisa ser bem cuidada. Até um hotel econômico pode ter uma oferta de alimentos & bebidas muito atraentes, assim ele se tornará bem mais competitivo e ganhará boas lembranças. Os hotéis de luxo já entenderem isso há anos, e quando vemos a abertura dos restaurantes do Rosewood na Cidade Matarazzo em São Paulo percebemos o nível de excelência alcançado no país. Comida, além de tudo, virou também entretenimento. 

LCS: Recentemente um amigo, gerente geral de um empreendimento Middle escale, me disse que os hóspedes preferem pedir ifood a room service. Que lições hoteleiros precisam aprender?

CP: É um comportamento muito atual e frequente mesmo. O mercado de delivery explodiu e se transformou nos últimos anos pandêmicos, até restaurantes famosos entraram nos aplicativos de entrega. Atualmente as pessoas veem o delivery como uma ótima opção para comer bem, de forma prática. Antes era mais restrito a comidas fast como, por exemplo, lanches, pizzas e hambúrgueres. O comportamento mudou e os hotéis precisam se adaptar mais uma vez e inovar. Se eu posso pedir uma ótima salada de uma marca que eu gosto e confio, por que pedir no cardápio velho e desatualizado do Room Service do hotel? Se o hoteleiro não tiver condições de investir em uma bela oferta, por que não fazer uma curadoria e parcerias com os melhores restaurantes próximos que entregam ? É uma forma também de valorizar a comunidade local e promover a gastronomia da cidade. O consumidor quer escolha e liberdade, e tenho convicção que se a oferta de Room Service for competitiva e atraente, além de ser bem comunicada, o cliente irá experimentar e prestigiar o lugar que escolheu para dormir. No meio da pandemia, com todos os restaurantes fechados e grandes desafios, sugerimos ao nosso cliente, o Hotel Arpoador, no Rio de Janeiro, lançar uma experiência: servir nos quartos um jantar para não hóspedes com a possibilidade de hospedagem. Foi um sucesso. Até hoje essa oferta atrai uma clientela em busca de novas experiências e privacidade. Acredito que o Room Service pode transcender do básico ao excepcional; é um ponto fundamental na jornada do cliente na hotelaria.

LCS: Você organiza um festival de gastronomia orgânica em Trancoso, conte para nós mais detalhes.

CP: Idealizamos o projeto Organic Festival em 2018 junto ao hotel UXUA e contamos com parceiros importantes e fundamentais, como por exemplo nossa embaixadora Morena Leite do Capim Santo, para realizá-lo anualmente. Trancoso é o destino brasileiro mais associado ao luxo, casamentos, grandes festas e eventos. Mas a cidade é também reduto de uma biodiversidade incrível; reúne uma comunidade local apaixonante e um potencial factível para ser um destino referência em sustentabilidade no mundo. Infelizmente os alimentos orgânicos são raros e difíceis de acesso em Trancoso. No meio de tanta natureza, a provocação por uma alimentação mais saudável precisa ser incentivada. Durante o evento, costumamos convidar chefs engajados nessa causa vindo de todo Brasil para cozinhar nos hotéis e restaurantes do vilarejo, promover aulas gratuitas sobre alimentação para a comunidade local e ainda estreitar o laço com a cadeia produtiva local para incentivar seu crescimento. É uma forma de mostrar Trancoso sob uma outra visão, mais conectada com seu entorno e sua essência. A pausa gerada pela pandemia permitiu pensar novas ideias e estamos planejando a terceira edição do evento para a primeira semana de outubro, sempre em harmonia com a lua cheia, com belas novidades e atrações interessantes.

LCS: Um dos mais importantes chefs franceses disse que hoje a alta gastronomia esbarra na sustentabilidade. Pierre Hermé, por exemplo, vende macarons o ano inteiro de frutas que não são de época. Você tem debatido muito sustentabilidade. Qual o status hoje desse debate? Quais os próximos passos da gastronomia em termos sustentáveis?

CP: A sustentabilidade no mercado de alimentos é um assunto complexo e sempre bastante espinhoso. Tentamos entender melhor, discutir esses assuntos e provocar debates saudáveis no evento Food Forum que será realizado esse ano no hotel Unique em São Paulo. Atualmente alguns chefs de cozinha têm adotado posturas e posicionamentos mais claros e transparentes sobre sua relação com o alimento, a cadeia produtiva e o meio ambiente. Na era das intensas multimídias eles têm um papel importantíssimo para disseminar informações e promover uma mudança de comportamento. Eu não conheço diretamente os processos de fabricação e os ingredientes usados pelo Pierre Hermé, mas sei que é possível trabalhar com frutas fora de época através do congelamento ou outros processos de conservação. Por exemplo, não vejo problema em consumir uma geléia de framboesa no inverno. As geléias surgiram justamente para evitar o desperdício de frutas excessivamente maduras em abundância. Os próximos passos da gastronomia serão sustentáveis por escolha e por necessidade, e esse debate precisa ser intensificado e mais aberto.

LCS: Enquanto consultor, você tem ajudado muitas marcas e empreendedores brasileiros na área hoteleira e gastronômica. Qual o erro mais comum que você observa quando se abre um restaurante, pousada ou hotel?

CP: Atuamos como um elo externo importante quando empresários precisam de oxigênio e novas ideias. Meu papel como consultor é entender a cultura da empresa, seus objetivos, traçar uma missão, entregar ideias e soluções para garantir bons resultados futuros. Geralmente os gestores estão focados no dia a dia com altas demandas e têm mais dificuldade de olhar para inovação ou a transformação, isso é totalmente natural. Tenho o grande privilégio de trabalhar com marcas e pessoas que admiro, aprendemos todos os dias juntos para vencer desafios recorrentes. Erros e acertos fazem parte do processo de aprendizado e de desenvolvimento, mas vemos que um conceito forte e uma narrativa bem construída são dois aspectos que nunca podem ser negligenciados.

LCS: Quais as tendências principais em gastronomia para os próximos anos?

CP: Tendências e modismos são sempre assuntos interessantes, é uma rota importante para o mundo dos negócios. Como consultor tenho como método a pesquisa constante e busco vivenciar o máximo de experiências possíveis para embasar meus conhecimentos na prática. Junto à consultoria parceira Cru.do acabamos de lançar um estudo completo de tendências para mercado de hospitalidade e alimentos e bebidas para o ano de 2022. Comer sem culpa, beber sem cair, climatarianismo, luxo casual, vegano fora da bolha, mixologia sem barreiras, bleisure (business + leisure) e turismo de experiência foram algumas das muitas tendências estudadas e aprofundadas. 

LCS: O que é luxo para você?

CP: Luxo é poder comer, viajar, explorar o mundo e estar em movimento. São minhas grandes paixões. Meu luxo mais precioso é estar na minha casa na França, perto da minha família, sem pressa e sobretudo nenhuma mensagem para responder, comendo um prato feito com amor a base de ingredientes que foram produzidos ali do lado. Luxo mesmo é rir, é estar com saúde, é amar, é se sentir bem. 

Contatos do Charles Piriou:

charles@charlespiriou.co

Instagram @charlespiriou

+55 (11) 9 8558 8858 

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