Conheci Gabriela Otto há exatos 20 anos. Em Buenos Aires. Fiquei impressionado com seu raciocínio rápido, seu carisma, talento, gentileza e sua habilidade em vender o então mais chique hotel carioca. Venho, a partir daí, acompanhando sua brilhante trajetória dentro do turismo brasileiro. Hoje, arrisco-me a dizer, é uma das maiores consultoras de hotelaria, não apenas de luxo, na América Latina. Entende de operação, finanças e marketing, o que é raro em um mercado tão segmentado. É presidente do HSMAI, conselheira e curadora dos maiores eventos de hospitalidade do país, professora da ESPM em dois disputadíssimos cursos há mais de dez anos, colaboradora de várias publicações da indústria de viagens.
Ao conhecer se Gabi, como carinhosamente a chamo, aquela conversa de incompatibilidade do universo acadêmico e corporativo perde sentido. Ela consegue transitar pelos dois universos tranquilamente. E é o típico caso do discípulo que superou o mestre, afinal muitos de seus antigos chefes hoje param para ouvir o que ela tem a dizer e aprendem quando ela sobe nos palcos.
Meu desejo é que ela escreva um livro. Afinal, ela tem ideias próprias muito consistentes, visionárias. Pensa a hotelaria na realidade brasileira. Não tira a hospitalidade do contexto maior do turismo. Tampouco traduz conceitos de fora. Provoca sem agredir. Agrada quem busca investir.
Veja abaixo a aula que ela dá sobre o cenário atual da hotelaria de luxo .
Como você vê o turismo de luxo hoje no Brasil e no mundo?
Atualmente, o mais interessante nessa indústria não é nem o seu crescimento, mas o perfil dos consumidores e a percepção sobre luxo em viagens. Atualmente, temos quatro gerações de pessoas viajando ao mesmo tempo e uma procura relevante por experiências significativas em destinos seguros e inesquecíveis.
A ascensão da classe média nas últimas décadas empurrou o topo da pirâmide, que estourou em busca de destinos únicos, antes que se tornem superlotados.
Mais do que o tamanho da suíte, a busca agora é por experiências sempre autênticas, se possível que propiciem conexões humanas com a comunidade local, hiperpersonalização, conexão total com o presente e, claro, sustentabilidade, com a natureza a seu alcance.
Sobre o Turismo de Luxo no Brasil, precisamos dividir a jornada do viajante para fazer essa análise. Muito se fala sobre a hotelaria de nível internacional do nosso país, mas o hóspede precisa chegar até lá. Portanto, é preciso incluir nessa análise a vivência nos aeroportos, transportes terrestres, atrações turísticas, atividades culturais e artísticas, e claro, a percepção de segurança.
Ainda hoje, o Brasil não tem as as flagships que representam a indústria hoteleira de luxo mundial como: Mandarim Oriental, Park Hyatt, Ritz Carlton, Four Seasons, One & Only, Peninsula, St.Regis e outras. Os destinos turísticos considerados mais luxuosos, na maioria das vezes são em função da diária de um hotel específico que fica na região. Novo Airão (AM) está no mapa dos destinos de Luxo pelo Anavilhanas Jungle; Governador Celso Ramos (SC) pelo Ponta dos Ganchos; Mairiporã (SP) pelo Unique Garden; Prado (BA) pela Fazenda São Francisco do Corumbao, assim como tantos outros. Isso está longe de ser um problema, apenas uma característica do estilo do turismo de luxo brasileiro. São hotéis independentes, pequenos, lifestyle, com muita autenticidade, se destacando pelo serviço personalizado e gastronomia regional saborosíssima.
O turismo de luxo brasileiro exalta nossa cultura e proporciona um diferencial competitivo na hospitalidade. Nosso luxo é simples, não simplista. Nosso jeito de receber, alegria, valorização dos afetos, espontaneidade e criatividade fazem parte do nosso luxo. Imagem é de fora para dentro (é como o público vê a marca), mas identidade é de dentro para fora. A descontração é a base da nossa identidade. Vamos viver e comunicar bem isso.
Carlos Ferreirinha certa vez disse que a hotelaria é o único segmento em que o Brasil poderia se posicionar tranquilamente no luxo. Qual sua opinião?
Como falei há pouco, não dá para considerar a hospedagem desconectada da jornada do viajante. O hotel faz parte de um contexto maior de experiência de viagem.
Temos a prestação de serviços no DNA, somos consumidores mimados, queremos ser ‘carregados no colo’ e estamos dispostos a pagar por tudo que é ‘personal’. Entretanto, para tornar esse afã inerente ao brasileiro em serviço eficaz precisamos aprimorar os processos e investir em capacitação. Não dá para prometer um serviço de alto padrão apenas dependendo da iniciativa individual de colaboradores com boa vontade. Profissional hoteleiro precisa de paixão, mas também de comprometimento. A chave para nos impulsionar a um patamar de bases mais sólidas no luxo é a consistência.
Claro que temos hotéis incríveis, e é preciso lembrar que muitos são pousadas lifestyle, não hotéis de ‘luxo clássico’. Por isso, antes de responder essa pergunta com sim ou não, é preciso avaliar o significado do luxo tipicamente brasileiro.
Portanto, eu concordo com a afirmação da pergunta, menos com o ‘tranquilamente’. Existem condições: se seguirmos ressaltando nossa autenticidade assim como os melhores restaurantes exaltam a matéria prima local, ganharmos mais consistência nos serviços e adequarmos a gestão comercial com uma estratégia de precificação mais moderna e tecnológica, podemos, sim, entrar em um outro patamar, sem perder nossa essência.
Como anda hoje a distribuição no turismo de luxo. Onde operadoras e agências poderiam investir mais?
Já sabemos que as agências que nicharam o negócio, investiram na customização do atendimento e se mantém updated com o mercado, cresceram muito, mesmo após a entrada das agências online.
A diversificação de portfolio, criatividade nos roteiros e experiências, estabelecimento de boas parcerias e saber como acessar o viajante de nicho seguirão sendo itens vitais para o sucesso de uma boa distribuição no luxo. Atualmente, o mercado das grandes agências e operadoras foi invadido por travel designers independentes, com uma carteira qualificada de clientes e cada vez mais competentes. A cadeia de viagens de luxo inteira está se beneficiando e aprimorando a distribuição do turismo de luxo.
Que marcas nacionais podem ganhar projeção internacional nesse sentido?
Fasano já ganhou, merecidamente. O desafio agora é o de toda marca de luxo, crescer sem perder a personalização.
Que destinos podem ser apostas no turismo de luxo no Brasil?
Bonito (MS) e Lençóis (MA) ainda têm espaço para experiências e hospitalidade de alto padrão. Fernando de Noronha (PE) seguirá se superando e Canela (RS) poderá nos surpreender com a abertura do Kempinsky Laje de Pedra.
Que marcas internacionais hoje apontam o futuro desse segmento?
Gosto muito da forma como as operadoras e agências Black Tomato e &Beyond se comunicam com o mercado, se mantendo na vanguarda do segmento.
Na hotelaria, impossível não colocar algumas das minhas marcas preferidas, todas com muito propósito e história por trás: One&Only , com foco na excelência, reputação inabalável, obsessão pela excelência e apego aos mínimos detalhes. O que mais esperar de uma marca que tem como filosofia: ‘We Create Joy’ e que cumprimenta seus hóspedes com a mão sobre o coração? Já Aman Resorts, cuja humanização é diferencial, ganhou minha atenção mais ainda em 2020 quando criou a marca Janu (‘Alma’ em Sânscrito). Ela explora o caminho da interação humana autêntica, expressão divertida e o bem-estar social. Em uma sociedade tão acelerada, o objetivo da marca é reiniciar a conexão humana…com alma. Maravilhosa! A Rocco Forte Hotels, trabalha a ideia de confiança, exaltação do negócio de família, onde todos entregam sua assinatura como garantia de qualidade, se implicam no negócio diretamente aumentando a credibilidade. Além disso, preservam a identidade individual de cada hotel mesmo em uma rede, e ainda agregam atributos de cada destino.
Seu curso na ESPM tem feito enorme sucesso desde 2011. Que mudanças você notou nas turmas, no mercado nesse tempo?
Esse curso fecha duas turmas ao ano há mais de 10 anos, tem ótimas avaliações, e faço muita questão de mantê-lo sempre muito atualizado, com exemplos recentes de marcas que se destacam no mercado, estudos atuais sobre o comportamento de consumo do viajante de alto padrão e as principais tendências das viagens de luxo.
Pelo conteúdo ser estratégico, não é direcionado para estudantes, mas para profissionais que já atuam no mercado. E esse diferencial foi o responsável pelas maiores mudanças no perfil e no nível de conhecimento dos alunos. Quando pensamos em perfil, antes, tínhamos muitos gestores e consultores de viagens de grandes agências, operadoras e redes hoteleiras. Ao longo do tempo, começamos a receber os donos dessas agências e operadoras, proprietários de hotéis, além de muitos travel designers independentes, interessados em ampliar seu share de negócios e se posicionar perante o público de alta renda. Em termos de conhecimento, no passado, a definição individual de luxo criava debates acalorados, pois os alunos vinham com preconceitos. Conforme o brasileiro foi viajando mais, se familiarizando com marcas de luxo nos shoppings nacionais, com acesso a experiências de serviços mais personalizadas, os alunos chegam na sala de aula com a cabeça mais aberta, já entendendo que luxo não se resume apenas a preço alto, e que um produto pode representar e ter motivações de compra diferentes para cada pessoa.
Qual a experiência no mercado de alto valor agregado que mais lhe marcou na vida?
Como passei boa parte da minha vida profissional em hotéis de alto padrão, as experiências com hospitalidade marcaram muito. No Ritz Carlton, nos EUA, certa vez o capitão porteiro abriu a porta do carro já me chamando pelo nome. Ao me aproximar da recepção a mesma coisa: ‘Welcome to Ritz Carlton, Mrs Otto. It’s a pleasure to have you here.’ Imagina uma marca que entrega nos primeiros segundos sua promessa: fazer você se sentir importante, bem-vinda, esperada. Eu sou hoteleira, sei que os funcionários se comunicam por fones de ouvido, que o bell boy abre o porta-malas, checa o nome da bagagem, confirma com a recepção e tudo segue a partir daí. Entretanto, a mágica só acontece porque os processos por trás passam praticamente desapercebidos. É a arte do encantamento em ação, sendo perfeitamente executada na sua frente. Não lembro de nada daquele hotel, nem a cidade como você pode ver, mas nunca me esquecerei de como me senti em um Ritz Carlton. E o melhor, esse processo é padrão, ou seja, consistente.
Quando você lança um livro?
(Risos) Jáperdi as contas de quantas vezes já ouvi essa pergunta. Escrevo artigos há tantos anos que já me questiono se um livro seria mesmo atemporal. Mas a verdade é que meu livro sobre o tema tem rascunho, nome e estrutura prontos há algum tempo. Entretanto, tenho 2 questões a serem resolvidas: tenho mil ideias, mas toda hora tenho ideias para agregar ao conteúdo, quero aprofundar de algum tema, acho que vale abrir um novo capítulo, ou cabe a menção do case de uma marca que fez algo incrível recentemente. Outro ponto é o tempo, se não for com a qualidade e relevância que desejo, deixarei ‘na gaveta’. Cansei de ler livros sobre o mercado de luxo que apenas traduzem as ideias de publicações internacionais sem um olhar novo ou mais regional sobre o tema. Como leitora, eu largo o livro e busco os autores originais. Imagino que outros leitores fariam o mesmo.Meu blog, início de toda minha empresa e projeção do meu nome desvinculado da empresa que eu trabalhava, aconteceu 14 anos atrás, durante minha licença maternidade, acredita? Só assim para eu parar e tirar um tempo para meus projetos pessoais.Eu penso que, se tiver alguém para organizar tudo isso comigo e fazer acontecer, ele sai. Você topa?
Como criar experiências de turismo de luxo multigeracionais?
A viagem multigeracional, no fundo, tem um grande e único propósito: afastar-se da rotina acelerada do dia a dia, e passar tempo de qualidade com as pessoas que você ama, criando memórias únicas em família.Se o consultor de viagens, o hotel e toda cadeia de atendimento entender isso, e conectar com uma ‘frictionless experience’ , isto é, mínimo de stress, burocracia, espera, e coisas chatas da viagem; eles ganharão não só um cliente, mas todas as gerações de viajantes daquela família, para o resto da vida.
Como você vê essa estratégia de algumas redes de colocarem lifestyle e luxo no mesmo guarda-chuva?
Sem volta. O guarda-chuva das grandes redes já engloba uma variedade enorme de marcas com posicionamentos diferentes há tempos. Existe, sim, uma indefinição dos limites entre luxo e lifestyle, que estão coexistindo na mesma prateleira. E essa confusão de fronteiras deve continuar, pelo menos enquanto os consumidores seguirem tentados a experimentar um luxo mais trendy, contemporâneo, e os investidores dispostos a pagar o preço por marcas que superem o valor aportado mais rapidamente. O impulsionamento dos lifestyle através das redes uniu o melhor dos dois mundos: mantêm as características dos hoteis boutique – pequenos, contemporâneos e intimistas; somados a força das redes, com seus programas de fidelidade, consistência nos serviços e economia em escala.
Lembrando que os lifestyle são a nova geração dos hoteis boutique, e ainda mais adaptáveis às tendências atuais, mais franqueáveis e navegando melhor pelas categorias hoteleiras. Em comparação aos hotéis de alto padrão, vital entender que, antes, o luxo era definido como comodidades específicas para os hóspedes, tamanhos de quartos, níveis de serviço e qualidade do produto. Agora, é determinado pela experiência e classificação do hóspede. Então, a questão aqui é mais complexa. Afinal, o que é uma experiência de luxo? A formalidade do Ritz Carlton ou a informalidade de um Moxy?
Do ponto de vista do investidor, a informalidade dos níveis de serviço ao hóspede e a flexibilidade em torno das especificações do produto potencialmente tornam os hotéis lifestyle uma proposta mais atraente, pois permite um investimento geral menor e margens operacionais mais altas do que os hotéis de luxo clássicos.
Em geral, os lifestyle são uma ‘borrifada de ar fresco’ em muitas redes, tanto financeiramente quanto na percepção de vanguardismo da empresa.
Uma curiosidade sobre os hotéis lifestyle são os primeiros ‘W’, que foram conversões de Holiday Inns. Na época, a Starwood pegava uma propriedade boring, transformava em um ambiente trendy, descolado, e cobrava muito mais. Hoje, construir um W é mais caro do que um Sheraton. O mesmo aconteceu com alguns Mama Shelter mundo afora, agora sob o guarda-chuva da Accor. Os lifestyle evoluíram. É mais lucrativo para as operadoras hoteleiras investirem nesse tipo de hotel do que comprar outro produto.
O desafio dos lifestyle é fazer com que os ‘hipsters’ atraídos por eles paguem o que é esperado para fazê-lo lucrativo. No momento que o modelo entra para o guarda-chuva de grandes redes, ele deixa de ser tão alternativo e super nichado, pois adere à ‘indústria’. A tendência é encontrar seu equilíbrio, e começar a atrair o público certo para deixar os investidores felizes.
Nessa pegada, já não é mais sobre quartos, mas sobre estilo de vida que se adapta ao gosto pessoal de cada hóspede, agregado às facilidades oferecidas.
Além disso, os hotéis de luxo exigem uma localização na área mais sofisticada das cidades flagships, enquanto os lifestyle podem estar em locais diferentes, secundários, onde eles é que criam a atmosfera ousada do lugar. O público dos lifestyle não precisa ficar na região AAA, mas querem estar conectados com as pessoas: onde estão os melhores bares, cena musical e artística.
Em resumo, é uma jogada de investimento. Mesmo que no meu mundo ideal os lifestyle sigam eternamente independentes e mantenham sua autenticidade inviolável, seu retorno maior pelo investimento em um período mais curto vem atraindo todos os olhares, e as redes não perderão essa chance de agradar seus investidores.
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