Arte & Cultura

A solidão no processo criativo

Criar é um ato solitário, surge do nosso conhecimento interno

Você pode estar estranhando esse título um tanto pessimista e, ao mesmo tempo, controverso, pois geralmente associamos o ato de criar a uma coisa boa, assertiva. Enquanto definimos a solidão como algo ruim, desagradável. De fato, podemos estabelecer uma conexão entre o estar solitário e o ser criativo ou entre o ser solitário e o estar criativo. Aproprio-me dos verbos ser e estar e vou tentar aqui realizar algumas conexões semânticas.

A característica maior do ser solitário é questão inerente a cada um de nós, seres humanos finitos. Nascemos sozinhos, vivemos boa parte de nossa existência sozinhos e o derradeiro final é notório. Ser solitário é intrínseco a nós, mas estar solitário é de outra ordem, cabe decisão e vontade.

Os gênios criam sozinhos. Empenham-se horas, dias, anos a fio em busca de algo novo, algo que o defina enquanto ser artístico pensante. E em todo esse processo de criação ele está, na maior parte do tempo, sozinho. Mas apesar da solidão física, seu inconsciente contém todo um repertório de conhecimentos distintos adquiridos ao longo de sua vida e que, a todo o momento, estão lá trabalhando, se conectando, se ajustando de tal maneira a fim de se obter um resultado satisfatório, inédito, recompensador. Assim ocorre com artistas, escritores, estilistas, físicos, engenheiros, designers. Não importa a área de atuação, o processo criativo é ato solitário.

Torna-se, portanto, compreensível que a necessidade de bons fundamentos culturais é fundamental para viabilizar qualquer ideia criativa. Ludwig van Beethoven tornou-se o maior compositor da história porque aprendeu muito estudando o passado e procurou assimilar o que ocorria em seu próprio tempo. Conhecia profundamente a obra de J. S. Bach tanto quanto a de contemporâneos como Haydn, seu mestre, e de Mozart. Contudo, seu conhecimento não se limitava aos grandes mestres da música, também se nutria de Shakespeare, o quarto movimento de sua sexta sinfonia, intitulado “A Tempestade”, foi inspirado na literatura do bardo inglês. Também imergia na obra de Goethe, dos quais alguns poemas foram transformados em Lieder – canções para voz e piano – além do hábito de ler a Bíblia. E quanto mais a surdez do gênio alemão progredia, mais encerrou-se em si mesmo. Seu mundo se tornou, literalmente, silencioso e solitário. Obteve em seu mais profundo inconsciente, diversas narrativas inspiradoras para continuar compondo e, incrivelmente, descobriu e tornou possível uma nova linguagem estética musical. Resultados nem sempre compreendidos por seus contemporâneos e algumas composições de sua última fase criadora soam “modernas” até os dias de hoje. Deduzimos que além do fato de Beethoven ter sido um gênio, ele estudou e muito, fomentou seu cérebro com as mais diversas formas de conhecimento. Em seu próprio isolamento acústico, teve onde recorrer portanto e continuar criando de uma forma muito peculiar e original. Experimentou a vida inteira e entre erros e acertos, legou-nos uma obra inconteste, inigualável, extraordinária. Beethoven transcendeu seus antecessores e influenciou diversas gerações de músicos, poetas, pintores e arquitetos.

Diante de exemplo tão plausível, como fica então a chamada criação coletiva ou colaborativa, expressões utilizadas com frequência nestes tempos?

Posto que o ato de criar é saber conectar os diversos saberes que um indivíduo contém, podemos deduzir que o processo criativo entre dois ou mais seres pensantes, nada mais é que a contribuição individual de cada um em busca de um denominador comum. E a primeira dificuldade surge exatamente nesse ponto, quanto cada um carrega de conhecimento, de fato, profundo e diversificado, em si? Quais as devidas qualidades desses domínios intelectuais?

Uma orquestra sinfônica é excepcional quando seus componentes também o são. Cada um contribuiu com seus saberes e experiências para que o todo alcance o ápice. Há que se ter, portanto, harmonia intelectual entre seus membros, mas não a mesma especialidade, pois não se exige que um violinista saiba tocar trompa nem flauta, mas que compreenda como esses instrumentos funcionam. Do mesmo modo, integrantes num processo de criação coletivo devem ter especialidades diversas, um mínimo de embasamento cultural e, de certo modo, de mesmo nível qualitativo. Em uma criação coletiva quanto maior a disparidade intelectual entre seus membros, mais complicado e frustrado será todo o processo. Ocasionando, na maior parte das vezes, em preciosas horas perdidas e, consequentemente, em investimentos desperdiçados.

Esforço, empenho e disciplina individual são a chave para qualquer processo criativo bem sucedido. Seja para um ato criativo solitário ou não. Criar não é tarefa fácil, ser criativo não é inerente a todos. Ideal mesmo seria estarmos criativos o tempo todo.

* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Les Cinq Sens.

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